Gelo;

09:53:00

Se eu pudesse retornar àquela tarde nublada ali no meio de maio, junho, quase férias escolares, eu congelaria aquela primeira imagem inocente que eu tive de você.

Manteria viva a lembrança da calça jeans larga e comprida caindo sobre o all star surrado, a camiseta cinza dois números acima do ideal. Se eu pudesse retornar ao meu par de botas marrom, minha calça dobrada nas barras e aquela blusa de linha toda desengonçada e ao mesmo tempo pudesse lembrar desses anos que já se passaram, eu com certeza teria estendido a conversa na estação Tatuapé pra que propositalmente nos desencontrássemos.

Se eu pudesse retornar àquela festa, já um tempo depois, não teria bebido, teria de fato parado ''na cervejinha'' e evitado aquela conversa desagradável. Teria me preocupado com minha mão melada de catuaba, meu cabelo escondendo o rastro do desastre químico da noite anterior e minha amiga sofrendo pelo término recente do namoro. Se eu pudesse retornar teria evitado erros, precipitações e teria contido minha ansiedade com os psicotrópicos, fitoterápicos e o balançar inconstante dos meus pés deitado no box da cama, assistindo a tv de tubo e olhando pela janela os passos do vizinho do terceiro bloco.

Teria escrito textos mais ausentes de você. Teria escolhido melhor as palavras. 

No silêncio do meu apartamento, na imensidão de todo espaço vazio as lembranças são cruéis. As paredes azul-calcinha estão cheias de neons imaginários rememorando arrependimentos e lamentos. Se eu pudesse retornar àquela tarde em que eu te criei dentro de mim, eu teria me desencontrado deste caminho e mantido aquele olhar meio de relance, meio apressado, daquele garoto que mais parecia um menino de ensino médio rindo com as amigas. Que belos dentes tortos ele tinha.

Mas mistérios são assim, me encantam, me hipnotizam, me prendem. Tanta água rolou por esta ponte que nos distancia e nem um passo de progressão nesta história. Tantas vezes me despedi e sem notar retornei. Tantas vezes acreditei que ia ser diferente e que de fato eu estava colocando um ponto final nesse drama e no dia seguinte escrevi mais uma página.

Se eu pudesse retornar àquela tarde em que lhe vi e desci a rampa da Assis Ribeiro cheio de perguntas (Quem? De onde? O que faz?), eu as teria respondido imediatamente. Nós somos assim: palavras frias, vazias, rápidas e diretas. 

-Esquece, Philippe. Tem roupa pra esticar no varal e louça na pia pra lavar.

Ah, se eu pudesse retornar ao Tatuapé e perder aquele trem...nunca teria descido a rampa achando que dessa vez, daquela vez em específico, o destino tinha tramado algo e ia ser diferente.

Sempre é pra ser diferente, mas no fundo é tudo igual. Se eu pudesse congelar aquele momento, teria parado por ali...mas as histórias, como gelo, derretem e evaporam.

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