Eu estou me reconstruindo, não nego.

Está difícil ter de colar os diversos pedaços meus que se espalharam por aí, estou operando diariamente para voltar a ser quem eu sou: um sonhador. E meus sonhos custam alto demais para meus bolsos, entretanto, nunca me abstive de ir atrás da busca do preço que tenho de pegar. Às vezes caro demais, outras muito aquém do que acho que deveria.

Não sei se estou sendo piegas demais ou se já me cansei, mas há um fato que não posso mudar: eu vivo de mudança. Eu sou um viajante no tempo e nos espaços e não tenho, diante da vida, a permissão de fincar raízes muito profundas. Não sei que frutos esta árvore produz ou pode produzir, sou apenas sombra para os cansados e lenha para os que estão frio por dentro. Tenho estado confuso, confesso, mas não me questiono mais sobre as coisas da vida, estou sentado esperando as respostas.

É conflituoso, é angustiante - mas eu sou isso e mais uma porção de sentimentos misturados em aquarela. Que me deixem em paz um pouquinho os seus sorrisos, suas novidades e suas glórias ante minhas derrotas, eu preciso me reconstruir também. Resilienciar - o meu verbo, o meu ciclo.

E se meu pescoço tivesse sido esticado naquela trança de lençol e ao invés de Theodoro com TH fosse Philippe com PH naquela lápide de mármore?

Seria audacioso da minha parte me abdicar de estar aqui e não ter de lidar com diversas questões, não seria necessário, no entanto, ser um palhaço num malabarismo desequilibrado. Pelo menos ninguém riria do meu desespero. Eu gostaria de ter ido embora de vez, naquele dia que você marcou ou alguns antes ou depois, queria poder ter dito que tudo ia ficar bem e ter encontrado uma solução tão prática quanto aquela a que se propôs meu grande afeto.

Fraco. Covarde. Estou preso em um canto sendo apunhalado por diversos lados. Eu estou sozinho, nu e jogado na rua. Todas as portas se fecharam à mesma velocidade que se abriram, só há uma que permanece aberta com uma luz que ilumina um corpo estirado, membros inchados e seus olhos mortos. Nunca mais me esquecerei do brilho que tiveram ao dizer que tudo ia ficar bem. Eram falsos.

Ora, se ficar bem é ter de passar pelos leões e sair vivo e em frangalhos, que eu possa me acovardar e me auto-apunhalar até meu fim. Que herança hei de deixar senão uns poemas mal escritos, uns risos vazios e umas cartas que nunca serão enviadas? Que lembrança ficará senão do covarde que no auge de sua covardia decidiu partir? E ir embora é decisão difícil, é pra quem tem força o suficiente pra dizer adeus ao que fica e se abrir ao que pode chegar e que talvez nunca virá. Eu quis ir embora e nunca consegui, estou ancorado nos meus afetos, nas minhas dores, nos meus enganos.

A mala está pesada. O fardo já não consigo suportar. As palavras não refletem minhas lágrimas sobre o teclado gasto de um computador velho. Eu cansei, Theodoro. Eu deveria ter partido e te deixado aqui, com as dores que eu sinto hoje, com as cicatrizes abertas de sempre, com os tormentos que me tomam a cabeça e refletem em meu corpo. Vão se os cabelos, tremem-se as mãos, rasgam-se os versos. Eu estou diluindo e acinzentando-me no mundo e não sei quando vou recuperar a cor. Este mar se cansou da fúria, enjoou da calmaria e não tem águas navegáveis e permissivas de vida...Onde está o ralo? Eu preciso escoar e nunca mais voltar.

Adeus. Se me pedissem uma palavra que definisse minha vida, esta seria. Há tanto eu venho dizendo tchau pras coisas que têm de seguir seu rumo que, pensando friamente, eu não sei mais se sou marinheiro - minha vocação tem sido de porto. As pessoas se ancoram em mim, trocam suas mercadorias, suas experiências, seu saberes, eu as pago com o riso que eu posso causar em algumas delas e de repente, num piscar de olhos, elas estão indo embora.

O mar sempre me encantou. A sua solidão sombria, sua imensidão ofensiva durante as noites e receptiva durante os dias e seu chacoalhar calmo, mas frio, sempre me inspiraram poesia. Nos meus encontros com aquela água salgada eu pude sentir, dentro do âmago, que há alguém ali cheio de amor pra dar, mas um amor inútil. Eu também sou mar. Com um peito intrigante e aberto cheio de água, mas é água salgada. E não há quem se aventure a embebedar-se de mar - ou de amar.

Há tempos eu me pego pensando em quantas pessoas passaram pela estrada e pararam na sombra pra me cumprimentar. Nenhuma delas permaneceu por muito tempo e todas tiveram que ir embora e seguir seus caminhos. Não consegui ir atrás de ninguém. O tempo está correndo, a rosa dos ventos está se descontrolando, as pontes estão ruindo e eu...bem...eu continuo sentado na beira da estrada esperando quem passe e diga ''-E aí, vamos embora? Eu vim pra ir com você''. E quem vem, geralmente, não pode ir além da próxima sombra, ou do próximo porto.

E nesses pequenos espaços eu me canso mais do que os que sempre caminharam. Há quem passe de estrada em estrada e vá trocando suas companhias. Há quem caminhe sozinho e espera que os outros se acheguem. E há os poetas, como eu, que sentados só observam e escrevem. Eu não desenho bem, eu não escrevo bem, eu não dramatizo bem. Eu sou um artista incompreendido assim como quando o mar engole algumas almas. Eu sou um porto querendo partir, com um peito cheio de água salgada. Eu sou um mar cheio de amor e que só aparenta ser horror. Eu sou tudo - e nunca me torno nada.

Eu estou solto no mar revolto. Sem meus remos, sem minhas rotas. Estou perdido tentando, burramente, me encontrar. Tudo está nego e azul. A solidão desse mar me aflige e me deixa perplexo. Eu sou um mar sem vida e revolto. Não tenho esperança, não tenho sonho, não tenho tesão pela busca de nada. Me tornei tudo o que eu sempre repudiei, foi como cuspir pra cima e deixar cair na testa. É ácido.

Meu barco à deriva nunca teve onde aportar, não sabe para onde e ir e não tem esperança de chegar em algum lugar. Sou eu, um monte de remédios, um monte de problemas e o mar: escuro e revolto. Sou eu, sozinho, como sempre, olhando pro céu e caindo mais vezes, cortando o nariz mais vezes e dessa vez não há sutura - eu já não tenho sete anos. Eu estou sangrando. Eu nem sei se estou alguma coisa...eu não sou nada mais que um marinheiro à deriva esperando ser engolido pelo mar das próprias angústias, das próprias lágrimas e do próprio coração. Eu sou a maior armadilha que poderia ter acontecido pra mim mesmo. Quem me disse que amar nos leva a lugares distantes tomou outra rota...

Eu estava caído, sentado à beira do caminho esperando o bonde passar e me levar pra junto de você. De repente seus pés estavam dentro de um chinelo de couro do meu lado, nítido, ainda usava aquele jeans e a camiseta branca. -Levanta Phil, eu vim pra te levar embora.

E você me tirou de toda embriaguez e narcóticos que permearam a noite. De repente, na sobriedade, te sentindo do meu lado, eu chorei mais ainda. E você não se importou em dizer pra eu parar, como sempre. Chorei mais ainda. Eis que começam os meus questionamentos e você me olha, ainda com aquele sorriso e fala ''Calma Philippe, olha que bonito o dia que tá nascendo.'' Por que eu não posso ir com você? Por que eu não fui no seu lugar? Por que você me deixou?

''Eu tinha que ir, Phil. Eu fui pra que você ficasse, uns tem que ir em benefício dos outros. Deu minha hora, eu precisava ir embora.''

Suas respostas genéricas me irritaram. Tentei questionar e você me pedia silêncio. Como eu queria que você realmente estivesse comigo pra me ouvir todos os dias, pra saber o quanto eu sinto a sua falta e o quanto ela me machuca. Mas você sempre apareceu quando não deveria. Que noite desgraçada pra me encontrar, perdido, embriagado pela lucidez da realidade, quase um zumbi querendo colo. Nessas noites você sempre aparecia.

Então me disse pra eu não me importar com os outros. Como não, Theodoro? Como não!? Você agora tem tantas respostas que eu não sei buscar...Está ficando difícil pra mim. Eu te amei tanto e por tão pouco tempo que nem consegui escrever uma poesia ou um soneto, foi tudo rápido demais e você se despediu. Não me venha dizer que está tudo bem. Quando a morte aparece pra dizer que a vida está boa, não sei se posso confiar.

De repente eu estou chorando, mais ainda, quando você me diz que estava acabando seu tempo e você precisava ir. Não foi você que disse que tudo ia ficar bem? Não foi você que disse que iria sair? E as coisas que a gente tinha que fazer? Eu estou sozinho de novo, Theo, e você jurou que eu nunca mais me sentiria assim. Eu me lembro que você disse que íamos ser felizes e olha o que eu estou me tornando...

''Phil, vou te deixar aqui, eu preciso ir embora, eu vim só pra te ajudar. Eu te amo Phil, eu estou sempre com você. Esse é meu tchau pra você, eu tenho que ir. Tchau, se cuida...''

E você se foi com o sopro de um vento. Nunca vou saber se você brincou de morrer ou brinca de viver. Você morreu fisicamente e está presente na minha vida todos os dias, ainda leio a sua mensagem dizendo que ia se internar, a sua mensagem dizendo que a comida era ruim mas que você estava melhor, ainda ouço o telefone tocar com o seu pedido de uma visita. Uma única visita. E você nunca mais me ligou. O restante...bem...o restante eu ainda vivo. Infelizmente você disse que era a última vez que me levaria pra casa e que tinha que ir embora. Você nunca mentiu pra mim...Tchau Theo, eu te amo.