A Crônica dos Meus Cachorros.

17:50:00

      Sempre fui uma criança que viveu em meio a cachorros. Minhas primeiras lembranças são de quando eu comi pão dentro da casinha do Mike Tyson, um pastor alemão preto com uma mancha branca no pescoço. Mike ficou ali, deitado, cuidando de mim enquanto eu comia até minha mãe me tirar dali aos berros dizendo que era uma loucura - e eu nem sabia o significado dessa palavra. Na casa em que morei com meus avós, uma tia e meus pais, enquanto a minha era construída, nós tínhamos na frente o Mike, e o Du. O Du era um poodle com vira-lata muitíssimo bravo, só saía do seu lugar pra comer, tomar água e fazer suas necessidades, fora isso, ele estava rosnando pra mim enquanto eu fazia carinho nos seus pelos cheios de nós, porque era impossível penteá-los até o veterinário chegar com uma anestesia pra tosar tudo. Ao fundo, tínhamos a Natasha e a Xereta, mãe e filha, e eu adorava brincar com elas num dia qualquer. Natasha era o nome da minha namoradinha na escola, e de certo modo, eu sentia ''seu amor'' em casa também. A Xereta fugiu um dia e ninguém mais soube dela, eu acho que ela deve ter morrido e ninguém me contou pra evitar uma frustração. Aí a parte da frente ficou em desequilíbrio com a parte de trás.
       Até que um dia, um primo da minha avó, policial, disse que tinha nos arrumado um poodle microtoy preto. Esse tipo de cachorro era símbolo de status. Eu me lembro que minha madrinha tinha uns quatro deles, e vivia com todos no colo, na cama, no sofá, na mesa. Isso me causou um certo desespero quando tive de passar um dia lá e vi que as pessoas que viviam em função dos cachorrinhos que só serviam pra latir. E fomos, eu, meu pai e meu tio, buscar o tal cachorro. De repente entra no carro um vira lata com muitos pelos lisos, de tamanho mediano e cego de um olho, pulando e me lambendo.
      -Qual o nome dele? Me indagaram.
       E prontamente eu soube: -Tunico!
       E o Tunico me amou desde aquele instante. Eu estava dormindo e minha avó abriu a porta da cozinha e ele correu pro meu quarto, subiu na cama e começou a me lamber. Eu sabia que ele me amava. E o Tunico foi o meu maior brinquedo, meu maior presente. Eu improvisei e fiz uma coleira com cadarços pra gente passear, eu casei-o com a Natasha pra que ambos fossem um casal, e aí a gente mudou pra nossa casa que ficou pronta. O Tunico todos os dias abria as manhãs correndo embaixo da minha janela e levantando as folhas que caíam do bosque que havia no vizinho e causava grandes dores de cabeça à nossa casa. As minhas lembranças mais tristes com meus cachorros foram a morte do Du, depois o Mike e a Natasha. O Du foi de velhice, o Mike foi definhando sem causa conhecida e a Natasha deslocou uma pata e não havia jeito de sarar, ela sentia uma dor que a fazia latir e chorar todas as vezes que se movia. Doía em todos da casa. Aí alguém ia, a levantava, dava água, ração e assim foram seus últimos dias.
       A morte do Tunico foi a mais triste. Era uma terça-feira nublada, ventava e era mais ou menos uma hora da tarde. Cheguei da aula, almocei, deitei-me pra assistir televisão. Meu pai chegou com o carro, abriu o portão, o Tunico saiu pra dar sua rotineira volta até a esquina enquanto meu pai não assoviava e voltou com o barulho seguido de: ''-Tunico, vem!''. E ele veio. Em menos de cinco minutos ele começou a respirar ofegante, era veneno. Meu pai deu-lhe leite, olhava desesperado pra minha mãe e eu voltei pro meu quarto.
       No desespero meu pai entrou e disse: -Seu cachorro tá morrendo! Faz alguma coisa!
       Eu cheguei, ele me olhou nos olhos e parou de respirar, de sofrer, de viver, de alegrar meus dias. Foi o dia mais triste da minha vida e segui semanas esperando-o correr de novo, mas ele era só um saco preto enterrado às margens do Paraíba. Dali em diante nós não tivemos mais cachorro, meus pais se separaram, fui morar em outra casa e acabou minha vida com um amigo canino. Eu tenho até hoje a última gravata que veio com o Tunico do Pet Shop, é a minha lembrança mais viva dele já que não tenho fotos da sua cara de bobo alegre. Aí o Rocco chegou. A princípio era um Sharpei, hoje é meio Sharpei, meio outra raça, mas continua com uma carinha enrugada que chega a dar dó quando vejo-o puxando toalhas do varal, mordendo os cabos de vassoura ou tirando tudo o que tem no armário da lavanderia pra tentar pegar o pote de ração.        O Rocco late todos os dias de manhã pra alguém sair e ele ter certeza de que não está sozinho, ele late pra brincar, late pra passear e late pra segunda refeição. Esses dias ele ficou sem voz, não latia nada, estava além da rouquidão. Por um momento me lembrei das dores de todos os meus cachorros e tratei de remediá-lo logo.
       No olhar triste (por causa do excesso de pele) do Rocco eu vejo toda grandeza do Mike, toda braveza do Du, toda quietude da Natasha e da Xereta e toda pureza do Tunico, ele é uma mistura louca de todos os cachorros que eu já tive e quiçá terei e me faz ter uma saudade que faz correr até uma lagriminha. O Tunico era o único de todos que poderia estar vivo, ainda que sem dentes e já bem idoso, mas a vida quis levá-lo pra, quem sabe, evitar um sofrimento, assim como os outros. Meus cachorros foram minha primeira lição na vida sobre a alegria da presença, sobre superar os obstáculos (como uma briga por uma roupa comida), e mais do que isso: a dor da falta.
       Aquela dor de olhar, procurar e saber que nunca mais aquele bichinho sem vergonha vai encostar as patas na sua barriga e pedir um carinho na cabeça querendo dizer que a existência deles é uma extensão da sua, que a vida deles depende da sua disposição em trocar a água, colocar a ração e sair pra passear, porque parece que a eternidade deles nunca fora eterna o suficiente pra eu levá-las pra conversa de bar. Sempre ficaram na memória, num papel escrito, ou numa gravatinha amarela guardada dentro de um cofre de lata com segredo.

       Mike, Du, Natasha, Xereta e Tunico: esse texto é o meu passeio com vocês pelas palavras, vocês mereciam mais, mas se eu me estender vão cair outras lagriminhas.

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