Tem gente que chega sem pedir licença. Entra e já joga as coisas no sofá, abre a geladeira, brinca com o seu cachorro,com o seu eu. Como se sua casa fosse a sua própria, como se o seu coração tivesse um placa na frente dizendo ser albergue beneficente: àqueles que encontram teto melhor, resto só a história da superação.
      Como se agir seguindo todos os procedimentos burocráticos de tocar a campainha e tirar o sapato à porta não fossem suficientes pra criar uma sistematização incoerente pra impedir qualquer transeunte de nos adentrar. Há esses que pedem licença, cheios dos não-me-toques, das regras, das lições, da etiqueta à mesa ou fora dela. Mas os que me movem e me comovem, de certo modo, são os que chegam sem tocar campainha e os que não querem abrir a geladeira. Aqueles que chegam metendo o pé na porta.
Assustando os que estão sentados em suas monotonias típicas de domingo, sorrindo bravamente pelo estrago feito na proteção da morada. -Aqui estou!
     São pelos que chegam dizendo que estão -aqui- que meu coração esmorece, esses que nunca se imagina o por que ou pra que ter na vida, mas que começam a revirar a casa do avesso. Como ladrões dementadores de nossa alma. Esses, que estragam a porta, transformam o domingo em sábado e te empurram pra dentro do seu quarto - ali, onde você se esconde de tudo o que teme: o frio, o sol, as pessoas, a vida. Só eles ousam entrar.
      São esses que abalam o emocional, que nos fazem pedir: -Socorro! O que eu faço!? São esses que abrem a geladeira e deixam cair comida pelo chão, que arrotam na mesa e que instantaneamente nos tiram um sorriso. Que importam as regras de etiqueta pra alguém que derrubou a nossa porta? Que importam os processos burocráticos de visitação pra quem não sabe por que chegou e não sabe quando se vai? E quando se vai, o vazio que fica nos revela: somente quem derrubou a porta é que nos faz reconstruí-la. Somente quem derrubou a nossa porta é que nos comove a chorar pela lembrança tão doce de um momento outlier da vida. Somente quem foi rock'n roll nos deixa desapontados com qualquer bossa nova. A porta que foi derrubada era pra ser inabalada por séculos e quem a quebrou? Quem nunca pediu licença pra entrar.