Carta.

20:15:00

Oi Hamtaro.
Como estão as coisas aí no Brasil?
      Aqui na Bósnia continua tudo a mesma coisa, muito frio, muito gelado, quase nem tomo mais cerveja ou vodca. Não sei se aqui é a Europa que eu sonhei que fosse. Também não sei se me precipitei em não lhe dizer que vinha embora. Enfim. Eu sei que você deve ter aberto essa carta achando uma afronta, mas eu precisava escrever pra alguém que eu amasse. Só poderia ser você.
Decidir largar tudo no Brasil após o mestrado de forma silenciosa foi duro. Mas sabe, eu precisava. Todos estavam com suas vidas resolvidas, casados, fazendo suas mesmices, contando suas esquisitices e eu continuava a me ocupar dos livros de sociologia, filosofia e ciência política. Que novidade a minha vida foi depois que te conheci? Todos os finais de semana estávamos nós, naquela pizzaria, naquele bar, naquela hamburgueria, naquela casa de show, naquele cinema, naquele shopping. Era tudo muito pequeno, e você sabe. Doeu muito quando decidi mudar.
      Geralmente as pessoas vão estudar na Europa dos guias de turismo, na França, Itália ou Inglaterra. Portugal e Espanha são sempre segundas opções. E a Bósnia? Nem sequer sabemos falar o nome dela direito. E o idioma bósnio é interessante, espero que um dia alguma grande corporação olhe pra ele no meu currículo e note o diferencial. E eu vim pra cá. Nem parece que se passaram três meses desde a última vez que o vi. Você se lembra? Eu me lembro do seu suéter cinza e amarelo, sua calça jeans, seu sapatênis, seu cabelo, seus óculos quadrados. Você está cada dia mais parecendo um médico. O médico do meu coração. Eu lhe disse o quando te amava, e não deixei-o de fazer. Sempre ligo a televisão nos desenhos animados bósnios, e nunca passa Hamtaro. Talvez só eu, aqui nesse bloco de gelo, conheça e tenha Hamtaro em meu coração.
      E a faculdade? E as coisas? Vendi minha máquina de lavar, meus móveis, me dispus de tudo. O dinheiro está guardado pra quando eu voltar para o Brasil. Talvez daqui cinco, seis anos. Não sei bem quanto tempo essa minha aventura vai durar.
Sabe das minhas pessoas? Eu também não. Alguém te ligou pra perguntar o que houve comigo e porque sumi? Minha mãe escreveu dizendo que umas duas pessoas, inimagináveis, perguntaram. Eram cobradores de dívidas que já estão quitadas. Aqui faz muito frio, de verdade. Sempre olho da janela do meu apartamento, quando estou comendo fondue, e lembro de você. Do seu olho me pedindo pra ficar sempre que eu precisava partir. Eu precisei partir. Viver neste país que eu não sei, sequer, comprar comida, é fantástico. Conheci dois brasileiros que estão me ajudando, também vieram aventurados e fixaram suas raízes. Aqui eu sou um solitário. Não consigo conversar ou me comunicar com quase ninguém, até mesmo as pessoas aqui são frias como gelo. Sinto sua falta.
     A todo momento que consigo dizer que sou brasileiro, alguém diz ''samba'', ''carnaval'', ''Ronaldo''. É como se fôssemos um resumo disso. Você sabe como eu odeio os resumos. Estou numa escola de culinária francesa, aguarde-me quando nos encontrarmos.
Você está bem, meu querido? Está mesmo? A saudade aperta sempre, e eu choro muito, mas antes que eu me dê conta, tudo virou gelo. Doído. Parece que tudo ocorre bem aí em terras tupiniquins. Embora eu tenha excluído as redes sociais, eu acompanho a dos outros. Acho que Deus deve olhar assim pra minha vida. E você? Já conheceu outros caras? Sabe, eu te amo, amo mesmo, mas não se prenda a incerteza que eu sou. Você merece, Hamtaro, alguém que entenda de videogames e Game Of Thrones, e não fique discutindo quem é o filho da mãe em 500 dias com ela. Sabe, você vai um dia salvar vidas...e eu? Eu nem sei o que fazer da minha. Mas no momento, a Bósnia está me parecendo uma boa saída.
      Eu espero que você esteja bem, e que você me responda, mesmo que seja pra dizer que me odeia e que chorou dois dias ao saber que eu não voltaria depois daquele sábado. Eu não te abandonei, eu te trouxe aqui dentro comigo. Doeu muito nosso último abraço, comprei um perfume igual ao seu pra passar no travesseiro. É como se eu te sentisse comigo. Você é meu maior amor, meu maior amigo. E olha que a gente nunca poderia ter dado certo.
Enfim, espero que esteja tudo bem. De verdade. E que, no fundo, no fundo, você me perdoe.
     Eu te amo, de todo meu coração,
Philippe.

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