Encontro com a solidão.

19:43:00

      Ela chegou, tocou a campainha, não ouvi o roncar do motor do carro. Rastejei-me até a porta, convicto de que não haveria maiores novidades naquele dia. De fato, não houve. Ela entrou calada. Se jogou na minha poltrona preferida, já moldada pelo meu corpo. Sentei-me à sua frente. No rádio, um cd antigo de poesias cantadas e desconhecidas por quem nunca compreendeu aquele autor. Olhou-me fundo nos olhos. Você está pior, disse. Estou, retruquei. E não soube porque ela me visitara para atrapalhar o sentimento sóbrio que eu tinha durante dias.
     Cantarolou um verso da música. Odiei. Quando a fitei nos olhos, enxerguei o infinito. Novamente. Receber sua visita me trazia à tona tudo o que havia passado e, caindo no pleonasmo, já havia se tornado passado. Nunca achei que estar em sua presença seria tão entediante. Dias e dias sem retrucar nenhuma blasfêmia, nenhum xingamento. O copo transbordou. Respirei fundo, e gaguejando perguntei o por que. Por que eu haveria de terminar a vida com uma estante cheia de títulos, uma casa cheia de móveis, quinquilharias e empregados e o coração cheio de whisky e cheirando a pó? Por que se foram os amigos, os filhos, os alunos, os eleitores? Mesmas manhãs insossas com um café prescrito pra diabetes que inevitavelmente se desenvolvera. Mesmos almoços vazios, olhando a cadeira ao lado e se perguntando por que. Por que. Por que. Por que.
     No meu colo diversos poemas numa pasta. Joguei-os pro alto. Ela não me respondera. Era pior do que eu pensava. Abaixou-se, sorriu de lado. De fato, eu me tornara um palhaço. Caíram todos os escritos pela sala. A voz, já enrouquecida pela velhice ecoava no corredor. Nenhum empregado apareceu. Por que? Responda, vagabunda, responda, desgraçada. Riu do meu desespero. Já não havia forças para quebrar o espelho do aparador. Era tudo uma questão de velhice. Ajoelhei-me aos seus pés. Cansado. Embrutecido pela tristeza que a vida trouxera. Pelo fado que construiu o final dos dias. Pra quem ficaria aquele monte de coisa inútil e sem valor? Tudo conquistado por um homem nu. Em meio às lágrimas, já gaguejando, perguntei novamente: Por que?
      Ela se levantou. Me empurrou no chão. Caí, quase morto. Colocou um pé sobre meu peito, não doía. Anestesiado pela dor de uma vida de oitenta e tantos, achei que o desencarne aconteceria naquele momento. Agachou-se ainda com o pé sobre mim. Fitou-me com seus olhos avermelhados, apaixonantes. Porque eu sou superior aos homens, responda-me você, quando foi diferente? Engoli seco sua resposta que se tornou a maior questão daquele momento. Seus passos foram se afastando, a porta bateu. Era eu sobre meus versos, eu sobre tudo aquilo que escrevi sobre o que se tornou nada. O encontro mais duro da vida. Eu e a solidão, olho a olho, dentro da minha sala.

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