A Talhada.

20:30:00

     O fio afiado da faca rasga a fruta fibrosa dentro do copo metálico, um arrepio surge do chão todas as vezes que esse fio toca a pele, por segundos de sanidade a força bruta não faz o sangue jorrar.
Quando se vive com o fio da faca tocando a pele a tentação de rompê-la, nem que seja por curiosidade; é enorme: como seria ver o sangue jorrar quente e rubro na pele branca e deixar sair entre as plaquetas toda angústia, toda mágoa, toda tristeza...
       O sangue saindo é o grito expulsando os demônios que dançam sobre os ombros cantando lamúrias que não se compreende. ''-Mas que diabos eu fiz com meu dedo!?'' O fio da faca rompe o coração e corta a película de coragem que protege os olhos: caem as lágrimas, caem os sentimentos. Desconexos, pouco importando-se com sua reação estranha ao oxigênio externo. Sentimentos precisam sair.
       Um curativo nunca é o suficiente pra fechar; a marca da ferida fica sempre ali pra gente se lembrar: é, doeu. E como doeu. A marca fica ali como um lembrete pra um novo acerto ou um novo erro, depende, exclusivamente, da nossa coragem em fitá-la. Eu caí menino porque olhava pro céu, um olhar tão distante que rompeu a ligação do meu nariz com o resto do rosto. Virar o pescoço pra olhar a própria cicatriz exige saída da zona de conforto, instiga-nos a buscar enxergar nitidamente onde dói e porque dói.
       Cortei meu dedo assassinando uma cebola. Onde a faca rompeu a pele e fez-se sangue pelas mãos, em que ponto o metal parou de talhar a fruta vermelha e lançou o sangue sobre o ar? Nosso corpo é o maior bloco de anotações dos pensamentos da alma: cada talho é uma lembrança, uma lição de casa mal feita, um pedido de socorro. A talhada dói, mas ensina.

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