A posse contra a propriedade.
16:31:00
Quando penso na Constituição Federal sempre me vem a mente qual é o seu real impacto na vida dos cidadãos, ora, não há nenhum sentido o direito impresso em papel se ele não for encontrado no cotidiano, nas cidades. O meu objetivo com esse texto é fazer uma reflexão sobre o problema da moradia e urbanidade, em especial em São Paulo, e a denúncia do não comprimento da lei maior que rege o país.
Ao longo dos últimos anos criamos e aprovamos o Ministério das Cidades a legislação urbanística, o Estatuto da Cidade, tudo isso com muita alegria e muita luta, no entanto não há regulação do Estado para que essas leis sejam cumpridas, o IPTU progressivo no tempo – instrumento para barrar a especulação imobiliária e para controlar a quantidade de imoveis subutilizados e completamente abandonados – em nenhum momento foi realmente implementado, diz lenda que alguns proprietários de imoveis ociosos chegaram a receber notificação, mas ele nunca foi efetivamente aplicado. A legislação urbana é desconhecida por grande parte dos juristas, que tratam com descaso e até mesmo com certo tom de deboche a função social da propriedade.
As políticas públicas na área de habitação (ou a ausência delas) trouxeram impactos vistos até os dias de hoje. O congelamento do preço dos alugueis no governo Getúlio Vargas desestimulou o mercado imobiliário da época, que logo deixou de produzir habitação para aluguel. Com a crescente chegada de trabalhadores São Paulo entrou num deficit de moradia, que logo recebeu resposta da população trabalhadora, a autoconstrução, eles passaram a adquirir terrenos em locais distantes dos centros onde se concentrava o trabalho, que eram mais baratos e construíam a suas próprias residências nos subúrbios. A partir de então a autoconstrução se tornou a forma de morar da população pobre e também passou a ser uma prioridade, entendida como uma das maiores conquistas na vida. Essa cultura da casa própria também foi (e ainda é) utilizada nas políticas públicas de habitação, basta olhar o Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida. No entanto, a forma com que essa política pública é implementada, em sua maioria, se distancia do modelo moradia digna sonhado pelos movimentos sociais.
O que é ignorado pelo Estado é que há inúmeras formas de se fazer política pública de moradia, ou seja, o financiamento da propriedade não é a única, nem a mais inteligente saída para o problema de moradia, tendo em vista os seus problemas estruturais como o uso de terrenos nas periferias onde o preço é mais baixo, a excessiva padronização dos conjuntos habitacionais que ignoram as particularidades, a mobilidade urbana, o baixo coeficiente de aproveitamento devido a ausência de elevadores nos prédios para que seu valor continue pequeno, e sobretudo, a priorização de construções novas e da não utilização dos mais de 90 prédios ociosos no centro de São Paulo que poderiam ser desapropriados por interesse social e reformados, o que poderia ser minimamente justificado devido a grande quantia de dinheiro cedida pelas construtoras para o financiamento de campanhas políticas, independente dos partidos, criando uma “divida” entre os políticos eleitos e as construtoras. E isso é fato, construtoras não querem reformar, reforma não dá lucro. Nem mesmo é extremamente necessário a utilização de Parcerias Público Privadas (PPPs) na habitação, pois os benefícios públicos e sociais nessa área dificilmente vão ultrapassar os benefícios obtidos pelo setor privado.
Uma possível forma de habitação social, já amplamente utilizada em outros países com welfore state, é a locação social onde o Estado mantêm a propriedade do imóvel, mas a posse é dada ao cidadão. Essa política foi utilizada timidamente em alguns Conjuntos Habitacionais como por exemplo no Parque do Gato, projeto de urbanização da favela do Gato em São Paulo.
Para finalizar, um ponto que não deve ser ignorado é o perfil do cidadão que é priorizado nas políticas públicas de habitação, o modelo utilizado atualmente prioriza a população de três a cinco salários-mínimos, será realmente essa a parcela da população que mais carece da atuação do Estado? Falar políticas de moradia sempre traz a tona um debate que não será resolvido tão facilmente, afinal, estamos falando do que é mais sagrado em nossa sociedade: a propriedade.
Laryssa Kruger da Costa
Aluna de Gestão de Políticas Públicas
Universidade de São Paulo.
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